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Douglas Dunn – 1 + 4 poemas

 

Poeta escocês, nasceu em Inchinnan em 1942. Trabalhou como bibliotecário e foi professor residente em várias universidades entre os U.S.A e Reino Unido. Em 1991 era professor de Literatura Inglesa na Universidade de St. Andrews. Mais informações por aqui [traduções de Helena Barbas].

 

 

 

«Ode à minha secretária»*

Estás um desmazelo, e não nos enganemos.
Não possuis estátuas equestres.
No teu largo, o poeta Anón.
Monta uma bicicleta de pedra num plinto de pedra,
Erecto mas ordinário numa
Pose em calções e alforges,
Um monumento ao Poético
Ciclista Desconhecido, príncipe dos
Asteriscos por varrer, travessões perdidos,
Pontos finais, vírgulas, dois pontos, pontos e vírgulas –
Uma centena de milhar de jambos falhados
Engarrafamentos poéticos e bloqueios de trânsito.
Marcas de discurso, alfabetos, & comerciais,
Discutem a liberdade extremista
Em cafés étnicos. Fechando os olhos
Passeio-me pelos teus atalhos em zigue-zague, respiro o ar
Branqueado pela lavandaria, poliglota
Com léxicos loquazes. Passaportes
Saíram das tuas janelas quando a minha mente
Inventou o que significavas para mim.
Canetas inúteis conversam com elásticos.
Uma caixa de fósforos segreda a receitas
E clips abraçam clips.
Os olhos deambulam-me por dilemas e dores
Enquanto a tua pose angular esquelética
Empunha o seu megafone e projector
Corneteiro surreal e revolucionário.
Inclino-me sobre ti; sento-me diante de ti
O dia todo, a escrever e sem escrever,
Investigo as tuas seis gavetas possessivas,
Os teus esconderijos, onde encontro
Recordações da verdade e da consciência
Por entre signos denunciadores de esqualos
Cinza de beatas, contas por pagar, rolhas de vinhos
Uma garrafa vazia de Famous Grouse.
Catacumba do meu sistema nervoso,
És também um esgoto, um calabouço
Onde a vida passada se estratifica em paz
Na sua arqueologia oculta.
Podia escavá-la, mas não o farei.
Todos esses frascos vazios chamados Quink,
Uma vida de aparos, minas e pontas de feltro
Esforços civis, ajudados por
Teu ânimo sólido e roliço…
Ri e chorei sobre ti.
Sabes onde posso ser encontrado,
Sob um pináculo de palavras, ou
No meu jardim ou na universidade,
Em que mesa da biblioteca.
Conheces-me melhor que ninguém.
Graças a Deus, és inanimada.
Louvor aos Céus que sejas muda
Enquanto madeira carpinteirada, embora
Me fales a mim, e eu te fale a ti.
Sou teu agora, ou tu és minha.
Tanto faz, amiga de madeira.

«Fazer amor à luz da vela» **

A pele tinha esta aparência duzentos anos atrás
Quando a luz da vela lambia a palha erótica
Nas quintas dos montes onde a luz da vela enjanelada
Brunia o vidro imperfeito. Agourentas bagas de pilriteiro
Suspendiam-se do arbusto sem folhas, o botão do assombro
Vermelho sobre os hectares de neve nocturna
Tal como as terras altas se emplumavam contra a luz invernal
Na sua celestial altitude
As estrelas do século dezoito.

É assim que deve ser, as mudanças de forma pelo fogo
Da Nudez impaciente e da nossa
Sobre a cama grande. Uma vivacidade fundida
Desmonta os géneros e o modo como se movem
Identifica os casados prazeres venéreos
Intemporais nos quartos da espécie –
Um sorriso píctico, um beijo medieval,
Um jorro de ar pré-industrial murmurado
Na nossa cama contemporânea.

Trabalhados pelo fogo, os cachos de uvas na cornija
Iludem o seu gesso: a vinha da cornucópia,
A opulência de Pompeia, os rumores
Vindos de longe, ecos de florentinas
Intrigas, passadas Renascentistas na entrada
Onde mexericos espiam indeléveis
Ecos de cortejares, e estas peles moscovitas
Eram linho até que o fogo refizesse
O seu destino transiente.

Mãos mergulhadas em luz-e-sombra fundem
Ledas e sátiros na parede do quarto.
A chama de uma vela é um gramofone silencioso
E um livro cinemático: vela bestiário,
Vela História, metáfora amarela,
Fogo venéreo. Abre as cortinas agora
E acrescenta uma estrela ao que fazemos e dizemos
Passada a meia-noite no nosso único território,
O nosso privado todo o lado.

Quem mais contempla o estuário esta noite
Sonolento depois do amor? O Tristão local,
A Isolda indígena, e Dido vê
Eneias à luz da navegação.
Abelardo de coleira passeia Heloísa
Por entre as pedras tumulares, teixos e ciprestes.
Um Órfico pássaro nocturno grita ‘Eurídice’…
Amor, toca-me o coração com a tua identidade
E dorme, história, dorme.

«A Guerra do Congo» **

Num bar em Glasgow, um homem contou-me
Como servira no exército irlandês no Congo
Sob a bandeira das Nações Unidas.
“Muito quente”, disse-me ele, “quente e equatorial”.

Passaram uma aldeia deserta e abandonada até pelos cães
Passaram uma casa bombardeada.
Um braço e mão erguiam-se dos destroços da explosão
Na mão negra havia um envelope, entre os dedos e o polegar.

O soldado irlandês olhou a mão com a sua carta.
Pó de cimento fazia crosta no sangue do braço.
Rasgou o canto do envelope e retirou o selo,
Que enviou para o sobrinho em Howth, na Irlanda.

Em resposta à pergunta do meu amigo,
O soldado disse que era feio ler o correio de um estranho.
Ninguém por ali, na pequena cidade, além de
Cães, pássaros e o braço com a mão, tal um pau forcado.

Não disse se a mão era de homem ou de mulher
A que segurava a carta entre os dedos e o polegar.
Era o braço de um negro Anón., de África
Com uma carta acabada de receber, ou por mandar.

Preocupa-me é o sobrinho do soldado em Howth
Pegando no pedaço do envelope com pinças
Sobre o bico de uma chaleira, ao vapor, e o selo
Retirado, a secar-lhe entre duas folhas de mata-borrão.

A filatelia das guerras estrangeiras é um rapaz em Howt
A lamber uma charneira transparente, a montar um selo
No seu álbum, quente, quente e equatorial,
Aquele selo inocente e ignorante, solitário na história.

Será que ele ou ela a leram, a carta? Quem a escreveu? Quem a mandou?
Tantos selos, e selos de tantos países,
E rapazes a dizer aos tios e irmãos mais velhos,
“Não te esqueças, quando lá chegares, manda-me os selos deles”.

«Henry Petroski, O Lápis. Uma História.
Faber & Faber, £14.99
» **

Como objecto destinado a escrever, um lápis é engenharia elegante.
Pois como é que conseguiram espremer a mina cilíndrica
Adentro da madeira para fazer o que todos achamos ser atraente
Mesmo quando classifica exames com um vermelho satírico?

O Professor Petroski sabe mais do que ninguém sobre os lápis –
Dígitos da Descoberta, os dedos em uníssono com a mente
Engenheiros esboçando e sonhando o que pode ser feito
Transferindo do papel à substância algo delineado

Muito atrás na distância, a palavra latina penis
Surge no seu original, significando ‘uma cauda pequenina’ –
Royal Sovereign, Conté e Derwent, Faber e Venus:
Os monarcas dos lápis não são exclusivamente masculinos.

Na Primária ensinaram-nos primeiro a escrever numa lousa.
Romanos minúsculos, formávamos cada letra com um rangido;
Depois o Dia do Lápis chegou – valeu a pena esperar,
Embora os afiássemos até ao coto em menos de uma semana.

Os Miúdos dos lápis, cada um com sua caixa às cores, e com Hs e Bs
Aparas de cheiro doce, o bico aguçado como um dardo;
2B para fazer cócegas numa nuca – e como ela dizia “Está quieto!”;
Graffitis nos tampos das carteiras, as contas e a arte juvenil.

A razão computorizada e os projectos estão muito bem
Mas não se pode escarafunchar o nariz com um écran, e os teclados não funcionam
No que respeita àquele cheiro de cedro, de grafite-e-alfabeto
Enquanto o hardware e acessórios nos deixam sem nada para roer.

Esferográficas e bicos de feltro buscam a perfeição inventada
Mas os lápis são tão preciosos quanto o papel. Liga e madeira –
Um lápis é o símbolo da fabricação; a terra proporciona a sua afeição
Quando o que o homem trama com a natureza se torna útil e bom.

Petroski força mais do que a ponta do seu lápis.
“Duas culturas” tornam-se Uma no seu livro. Morre a controvérsia:
Artistas e cientistas usando aquele utensílio comum
Sonham o que fazem e tudo se inclui na mesma empresa.

Por isso leiam-no e descubram que a vida é uma demanda perpétua
Do que pode ser decentemente feito, e depois ser melhorado.
Com histórias e retratos mostra-nos como os lápis progrediram
De um pau na areia aos lápis produzidos em série que amámos.

«Apenas ali de pé» **

É uma ponte de madeira, uma ponte vulgar
Pequena, onde estive de pé muitas vezes,
Contemplando a água rápida e terrena, mirando
Ninharias a navegar, podas das roseiras do jardim a montante
Ramos, lixo, às vezes a corola de uma flor, observando
A botânica da margem imersa, dragada mas nunca afogada.
Durante anos, pensei, cruzei o fluxo no meu passeio diário,
Ignorando aquela ardência profunda, ou entrevendo-a.
Depois deu-me para me debruçar sobre o parapeito de madeira,
Olhar fixamente a maré sem peixes – ora não vi peixes
Nunca, em centenas de calmas olhadelas, e se diminui
No Verão, não é muito, apenas o suficiente
Para secar uma polegada ou duas de margem, para que um tufo
Erga o seu topo acima do forte e progressivo marulhar
Insignificante, pequena, uma vulgar ponte de madeira,
Tornou-se terraço para uma contemplação de 15 minutos
Sobre músculo líquido, uma energia que mais ninguém tem
Na mente ou corpo – um cliché de pequenos ribeiros iguais
Pedaço de terreno, pedra ou árvore sobrevivendo ao homem.
Vulgar como é, ainda levou anos a aprender;
Levou anos a ouvir os seus vários tons de murmúrio
Saber aquoso circundando ternura e raiva,
Sempre a mesma água, e nunca a mesma.
Esta não é uma pequena ponte de madeira vulgar,
Comecei a dizer a mim próprio. É a minha ponte.
Não atravessa da realidade ao espírito,
Mas, no meio, onde me ergo, debruçando-me do parapeito
A verdade silenciosa em mim escuta um gigante que corre
À solta numa liberdade desaferrolhada, livre como água
Drogado com o seu destino no estuário e no mar.
Não é a minha ardência. Nada como isto me pertence, diz-me.
E quanto à ponte, pertence à municipalidade.
A realidade é vossa, e o espírito é o vosso próprio espírito.
Aqui de pé por algum tempo, ou noutro sítio, aprendereis isso.
Não é o ribeiro ou a ponte: é o local em que me ergo
Um local preciso entre nenhures e a intemporalidade
Dentro de mim, uma porta que atravesso tornando-me invisível
Num quarto também invisível ou do qual regresso
Sem memória outra além do ruido sem linguagem nos ouvidos
Que pode ser claramente recordado, mas nunca dito.

*«Ode à minha secretária» / «Ode to my desk», in «The New Yorker», 20 de Maio de 1974, trad. inédita;

** «Fazer amor à luz da vela»/ «Love-making by Candlelight», «a Guerra do Congo»/«The war in the Congo», in «Northlight», Faber & Faber, 1988; «Henry Petroski, O Lápis. Uma História. / Faber & Faber, £14.99» / «Henri Petroski…» e «Apenas ali de pé»/ «Just standing there», in «Dante’s Drum Kit», Faber & Faber, 1993. Estas quatro traduções foram publicadas em 1997, “Douglas Dunn, 6 poemas” para «Poesia em Lisboa – Antologia Poética», C.M.L./ Casa F. Pessoa.

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