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da “Ética do Aborto”

mantenho  as minhas palavras publicadas no “Expresso” em 1998 – com 24 anos – muito infelizmente tornadas actuais pelas decisões do Supremo Tribunal Americano (a prepararem-se para contagiar o resto do mundo). As mulheres de hoje ficam com menos direitos que as respectivas avós.

«Uma mulher que vai abortar ignora os sentidos da palavra ética. Ou porque é analfabeta. Ou porque está demasiado desesperada para ir consultar o dicionário ou reler A Crítica da Razão Prática, de Kant. Nem tem disposição para folhear tratados de ética aplicada. Há que tomar uma decisão rápida para evitar um mal maior.
Honestamente, preocupa-se com o bem-estar dos outros, o respeito pela sua autonomia e o desejo de obedecer à lei. Sabe-se entalada num dilema entre o bem do indivíduo (o seu, o do futuro filho) e o bem da sociedade.

Não se discute que o aborto seja sempre sentido como uma questão moral, primeiro que tudo do foro privado, com as naturais consequências para o foro público.   Quando as sociedades acreditam que a mulher é responsável, que é um cidadão de pleno direito com maioridade política que até paga impostos, aceitam que aquela sua decisão privada seja a melhor para o bem da República. E, como na Bélgica, na Dinamarca, ou na Grécia, confiam na palavra da cidadã. Porque sabem que nenhuma mulher confunde aborto com anticoncepção. Porque têm um planeamento familiar decente. Porque, nos seus centros de saúde, os DIU e as pílulas não se esgotam. E até fazem as análises necessárias antes de os receitar.

Se o Estado entende que o aborto é antes de tudo uma questão pública, passa à mulher um atestado de menoridade social e política. Para seu bem, alivia-a de responsabilidades – e, logo, de culpas.

E ela pode descansar. Tem a certeza de que, vivendo num Estado laico, este não deixará que pressões religiosas interfiram com as Leis da República. Estas até podem determinar que o aborto é crime. Ela sabe que o cúmplice primeiro no acto de dar a vida – o progenitor, aquele que proporciona a circunstância base para ocorrência de crime – também será punido.

Depois, sabe que, enquanto parideira estatal, a República se responsabilizará pelos frutos do seu ventre. Se for alcoólica, poderá ser internada por atestado médico a fim de que a sua gravidez chegue saudavelmente a bom termo – como aconteceu à americana Janet Rowen. Um princípio a estender a drogadas e fumadoras. Obesas e preguiçosas serão obrigadas a fazer exercício físico. As magras a engordar. Com sorte, serão recuperadas umas quintas no campo onde podem passar férias de nove meses, devidamente vigiadas, para dar belos e rosados filhos à nação.

Previdente, a República aceitará que uma barriga de aluguer, a sofrer deformações, azias, agonias – e sem ver os pés durante uns quatro meses -, não sinta grande simpatia pelo inquilino indesejado: terá ainda que legislar sobre as depressões pós-parto. Os afectos são irrelevantes.

Para melhor controlar os projectos de vida, sugere-se o exemplo chinês, mas nunca para obrigar a mulher a abortar a partir do segundo filho! A cada cidadã será dada uma Caderneta Menstrual, a ser carimbada na Junta de Freguesia todos os meses, onde receberá baixa pela menopausa. Depois, a República responsabiliza-se pelas crianças: garante a adopção, oferece creches em condições, escolas e centros de saúde bem apetrechados, etc., etc. Pelo seu lado, as mulheres sabem que não vão ser profissionalmente prejudicadas, nem discriminadas nos impostos: não têm motivos para preocupações.

Sem ironias. Toda a cidadã tem o direito e o dever de tomar decisões morais. O Estado tem o dever de acreditar nela e aceitá-las. Abortar não é um prazer. Em última instância, abortar é uma humilhação: a fêmea vê-se obrigada a assumir que não pode cumprir o seu destino biológico primário. Uma função anterior às leis, a todas as morais, éticas, filosofias e religiões. Penalizar, despenalizar, culpabilizar, incriminar, referendar aquela decisão, ou este sofrimento, é um insulto.»

Helena Barbas [Expresso, Fevereiro 1998]
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