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Enis Batur – Elegias: O Sarcófago das Carpideiras

O Sarcófago das Carpideiras, de Stratão, Rei de Sídon (374-358 a.C.),
Museu de Arqueologia de Istambul, Turquia

«Elegias: O Sarcófago das Carpideiras»

Viator, viator!
Quod tu es, ego fui; quod nunc sum, et tu eris.
— Carmina Epigraphica

I
Se um dia devesses morrer,
nesse mesmo instante no meu céu
se esboçaria um meteoro em chamas.
Aqui na caravana a estalar de cidade em cidade
está a tenda que dobrei e guardei,
a antecipação que mantive
num enigma suspenso do dia para a noite
em cada preciso oásis secretamente abandonado.
Não em vão irá o canto da água
seguir esta gota da fonte –
a lira que ninguém ouve.

II
Se alguma vez devesse sentir, a memória
do toque incrustado – há quanto tempo!
na minha pele, iria acordar e tremer,
um longo arrepio a sacudir a mola do relógio
que suspendeu a respiração num recanto escuro,
e os vidros de todas as janelas dentro de mim
quebrar-se-iam, agora que uma se abriu,
a ampulheta que inverti e pus de lado
erguer-se-á, cada grão de areia pronto
a derreter-se na minha fronte: houve um tempo, assim
que deixaste esta terra a sofrer.

III
Se como um golpe as notícias ferirem, se
o gaguejar de uma língua de chumbo
formar essa frase de chumbo: em mim
um silencioso barco sem fim
veloz e suavemente lança as velas
direito a um horizonte há muito perdido.
A aurora já não volta agora, nem crepúsculo
nem sobrará lugar no meu peito
para as noites. Oiço a tua voz
escondendo-se sob as algas,
sal sólido amortalha-me, secretamente.

IV
Quem pode dizer que partiste, quem
pode invocar a coragem de confrontar
todos os sentidos a fenderem-se-me na cara,
não sei, ansiosamente persigo
o forte remédio a meu lado
que me cure dos meus cinco sentidos –
se, no doloroso virar da roda
que pensei suportava todos os fardos,
cada raio se quebrasse – numa pancada –
a minha própria seiva jorraria primeiro
da terra para a qual te estão a preparar.

V
Digo: guarda segredo de mim
que o papagaio de papel desapareceu da vista.
Deixa que os espelhos da casa se cubram,
e à minha luz, e às superfícies que a devoram.
Se por um momento pudesse ver meus olhos
a pedra em mim iria suar, a minha luz escurecer,
veria dentro da noite além da noite
e recordaria o vento partilhado.
Recordaria os telhados da cidade:
Guarda segredo que fugiste das águas que escondi –
Sou um arabesco de hera emaranhado no meu próprio céu.

VI
Vejo agora, vincada de alívio, a minha face
na face do túmulo, escura, uma tempestade
amassada dentro das nuvens;
o corpo começa-me a sua longa deliquescência,
hábitos outonais, caindo por uma distância
cujos dois extremos foram esquecidos,
a dor instala-se-me na face
que a minha mão esconde, depois deserta
para a semente incandescente em mim.
Eu chorarei na face norte
do túmulo, barco com um leme partido.

VII
Estás morto, parece. Em mim
estavas já morto há anos. Pensei
que te tinha enterrado assim, por lavar,
há anos e anos, antes que as cinzas ganhassem cinza.
Vivi contigo por causa de ti,
acho. Quase morri por causa de ti.
Foi muito tempo, muito tempo antes
de me reerguer onde me desmoronara
e acreditava que tu já não vivias mais.
Porei as mãos juntas sobre o túmulo:
a face uma cortina, o peito um prumo em pedra.

VIII
Um dia morrerias, eu sabia,
o mármore é duro. Teria desejado
um par de mãos a trabalhar aqui,
não estive lá antes. Desejei um par de mãos
para esculpir, mãos que pudessem ser tuas.
Não estive lá ainda, tendo estado há muito tempo.
Se não tivesse acontecido, iria acontecer
um dia, eu sabia, mas quem primeiro?
esperava e rezei e acendi uma vela
a derreter-se gota a gota diante de mim, parei:
tu caminhavas, em silêncio, há muito entre os mortos.

IX
Senti a ferida a doer-me na memória,
uma chuva teimosa trazida antes da chuva
como aquela sob a qual andávamos, nus
e a tremer, de árvore em árvore,
uma ilha alcançada em qualquer mapa que encontrássemos.
Cheiro a morangos silvestres. A neblina matinal.
Na terra o amassar de carne – então
momentosa ferida. De novo as nuvens se reúnem,
vejo, um pássaro migrador atrasado
olhar para a chuva, voa a fugir,
gravado no meu olhar gelado – heráldico.

X
A mim não deixaste dor, raiva, ressentimento
descobri; daquela célula de ciúme larvar
tão funda na minha essência, nem traço.
As nossas vidas pareciam inchar em crescendo,
depois vazar no mesmo leito. Se meus olhos lacrimejarem
não é por teres partido: aqui me deixas
assim, o sentido que me deste à distância
está aonde o levaste. Deverias ter esperado,
Se esperasses teríamos encontrado um ponto comum.
Busquei por ele, vou voltar atrás e ver outra vez.
Tem que regressar, o pássaro que deixei fugir.

XI
Deveria enfrentar o Sul, esta escultura de mim.
Perder-me entre tantas mulheres infelizes
que não falam entre si, nem com a morte –
é isso o que me ofende? Cerrada nesta questão,
cabeça levantada, costas direitas, ergo-me e exibo
a mulher em mim: só os olhos tenho baixos.
Que ninguém pense que outrem me poderia abraçar.
De agora em diante não soltarei o meu longo cabelo,
Não incharei delicadamente, mesmo na estação,
os meus lábios não rebentarão em flor.
Esculpe na pedra, se lograres, o que partiu de mim.

XII
Onde quer que me ponha, estarei no mesmo pé
que elas: mas a sombra profunda que busco por face
definha como o meu corpo – definhando sempre,
mas não por vergonha nem por estar exposta.
Quando o segredo que selámos juntos sair do casulo –
oh, se ao menos então fosse possível que vissem:
as minhas costas encharcadas de suor, o peito destemido
inclinado sobre mim, o coração a bombear como um fole,
e em mim aquela serpente a perder a pele –
oh, se ao menos pudesse vir da terra
e encher-me a saciar-se de mim.

XIII
O tempo passará. E os tempos que passam
farão esboroar-se em pó as coisas cegas em nós:
Poderiam a minha beleza, ou a glória dele, permanecer?
A cabeça pousando-me na mão, meu olhar perde-se
no vazio desta, são o que restará –
e este túmulo vazio e desgastado.
Realeza e beleza, nada mais que pó!
Turistas e investigadores de óculos
Passeiam-se em nossa volta no museu o dia todo.
Depois cai a escuridão, as luzes apagam-se, extintas
pelo guarda: toda a noite, cada noite, para nós os dois.

XIV
Não acreditei que a chama se extinguira – tu
mais divino que os deuses, mais varão que os varões:
a terra tremeu ao teu toque
e desabaram cidades e campos,
os meus poços vão bem mais fundo agora,
os meus desertos mais abrasadores que o teu sol meridiano;
Se vivi em sangue nos teus flancos
espero o teu regresso ressequido e selado.
Ninguém sonha mais ferozmente o teu súbito regresso,
a centelha súbita que acenderás –
o precioso fogo entre nós.

XV
Partiste: ficou-me só uma imagem na memória.
Podes ter esquecido qual a expedição ou qual a terra,
mas recordaste-te da estrangeira em mim:
montado no teu cavalo, foi a minha face que viste?
Não. Cada sílaba que falei lançava calor de longe –
como a centelha que brilhou dos teus olhos
pelo toque da corda errada da harpa.
Em mim mantiveste o rei que queria escapar-se
por um instante, nu, teimoso, remoto,
outro. Tu fixaste o horizonte
e chamaste do quarto: vem, sela-me o cavalo, minha rainha.

XVI
Uma procissão de mulheres circundará o túmulo
e nenhuma saberá que fui a última a chegar:
Tão cansada! Tão ansiosa por partir, há tanto tempo!
Há tanto ardendo com medo de ser esquecida:
Olha, há vida no meu útero!
Sem sono, sem descanso, o ritual a decorrer
na sua dor negra a transfigurar-nos já todos em pedra,
para sempre intocáveis na nossa solidão,
arrancada da árvore e deixada apodrecer numa salva de prata
que nenhuma mão pode alcançar – Sou jovem:
O que acontecerá ao sangue selvagem a ferver em mim?

XVII
Ficaste silencioso. A pergunta serpenteou e definhou:
Era eu uma esposa para ti em noites sem lua
ou continuámos irmã e irmão,
como quando nascemos? Agora só eu sei
que os nossos corpos não se encontraram – e que o espírito
voou longe a pousar num ramo quebradiço.
Quero que viva por séculos, a curiosidade, escura
devoradora, alimentando-se da suspeita profunda –
Eu que te vi, de espada a meu lado
meio a dormir, pronta a desembainhar-se, e em mim
uma horda incansável prestes a atacar direito a ti.

XVIII
(trad. em memória de Nazan Parer)
O dia de morrer virá, para mim também,
e todos aqueles que vi e ouvi
partirão: mesmo que outros vivam,
forçosamente será um julgamento final sobre mim:
a minha face de mármore desgastar-se-á a carpir –
porque sou todas as mulheres e também nenhuma.
Se me devo suster, esgotada de todas as linhas e cores,
Sustenho-me agora muda e sem eco,
sabe então que o tempo chegará
em que ninguém verá a última palavra na minha face.
Olhas-me: partiu já o instante, partiu já esse alento.

Istambul, 1993

Nota do autor: « O Sarcófago das Carpideiras fica no Salão dos Sarcófagos Sidonianos, no Museu de Arqueologia de Istambul. Segundo o Catálogo Mendel, é de estilo jónico, esculpido em ca. 350 a.C por um sidoniano que foi influenciado pela arte ática. O artista, que antes se pensava ser de origem lícia, provavelmente era de uma ilha ou cidade costeira do mar Egeu, pois o sarcófago é diferente das obras de Lícia em composição e espírito.
O poema foi despertado pelo artigo ilustrado de Samih Rifat sobre o sarcófago; seu artigo foi inspirado no ensaio de Onat Kutlar, “Epitáfio para um rei do leste”. No entanto, o poema não possui ligações orgânicas com nenhuma dessas peças, ou com a descrição autorizada no Catálogo Mendel. Olhei para as esculturas e compus. É necessário ver, ter visto, o sarcófago das carpideiras? Acho que não: o poema não depende mais do sarcófago no museu do que de outro sarcófago ainda enterrado, que talvez nunca seja encontrado. EB»

Inédito, tradução de Helena Barbas (a partir das versões inglesas), Setembro 2019; sobre o Sarcófago mais por aqui

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