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Os Versículos Satânicos de Salman Rushdie

Sir Ahmed Salman Rushdie (n. 1947) foi hoje atacado em Nova Iorque, uns 34/33 anos depois do lançamento da trilogia que lhe mereceu, a  14 de Fevereiro de 1989, a fatwa a ordenar-lhe a sua execução, proferida pelo (já defunto)  Aiatolá Ruhollah Khomeini.

Fica aqui a crítica (que continuo a subscrever) publicada em “O Independente” na data de lançamento da tradução portuguesa: “Os Versículos Satânicos”  – Um romance maldito a exigir uma dupla crítica, oriental e ocidental.

Comparado a Galileu, Giordano Bruno, ou Dreyfus, o caso­ Rushdie tem já feito correr rios de tinta por vários ­continentes, em artigos, reportagens, e agora livros – só ­entre Julho e Setembro (1989) foram publicados, em Londres, The ­Rushdie File de Lisa Appignanesi e Sara Maitland (Fourth­ Estate/ICA), Counterblasts No. 4: Sacred Cows por Fay Weldon ­(Chatto) e Salman Rushdie and the Third World: Myths of The­ Nation por Timothy Brennan (Macmillan).

Todos eles – ­defendam ou ataquem o autor – têm em comum a tónica na ­perspectiva política, na liberdade religiosa e de expressão, ­na hipocrisia da reacção ocidental à condenação à morte ­decretada pelo falecido Khomeini. Independentemente do grau ­de qualidade atribuído ao romance, todas as abordagens ­críticas relegam para segundo plano a perspectiva literária.

Porque Salman – ou Satã – Rushdie pertence(u) à fé/nação islâmica, e as histórias dos seus romances têm uma conotação ­geográfica específica, torna-se difícil separar os diversos­ campos, entender as posições, claramente antagónicas, que os­ seus escritos têm suscitado.

Os Versículos Satânicos é o último romance de uma trilogia ­composta por Os Filhos da Meia Noite (1981) e A Vergonha­ (1983). Segundo o autor, o elo de ligação entre eles é o ­tema da «anglicização» e da migração do povo indiano.

Rushdie diz que escreveu os dois primeiros «como se nunca­ tivesse partido» da sua terra natal, Bombaim, enquanto no ­terceiro pretendeu encenar o tema sob uma dupla perspectiva «a partida colectiva dos muçulmanos de Bombaim para­ Carachi», e a sua «de Bombaim para Londres. Era a primeira ­vez que escrevia a partir do ocidente.» O autor admite que ­fala sobre o Islão, mas especialmente sobre «migrações, ­metamorfoses, “eu”s divididos, amor, morte, Londres e ­Bombaim».

A trilogia debruça-se, pois, sobre um conflito ­cultural, expresso pela alegoria, a fantasia épica, o ­milagre, a paródia e «pastiche», por detrás dos quais­ ressalta, quase profética, a parábola política: os seus ­verdadeiros heróis são, cronologicamente, Indira Gandhi, ­Benazir Butho e Khomeini.

Tal como Hari Kumar de A Jóia da ­Coroa, Rushdie personifica e pretende dizer dois modos de­ olhar o mundo, determinado por geografias, histórias e ­religiões bem diversas. Os seus escritos exigem, então, uma ­dupla leitura, e uma dupla crítica, oriental e ocidental em­ simultâneo.

A partir de um conceito de arte islâmico, a «poética» face à ­qual os romances deverão ser medidos é, de facto, O Corão – ­a palavra de Alá inspirada divinamente a Maomé pelo anjo ­Gabriel. O livro é um tratado religioso e moral, mas também ­político e igualmente artístico. O seu dogma: «Não há deus­ senão Alá e Maomé é o seu profeta» transforma Maomé numa ­figura sagrada. Ele é o «rasul» ou mensageiro de deus, e o ­único milagre que o sistema corânico lhe atribui é a­ «i’jaz», a elegância da sua escrita.

O Corão representa, ­pois, O Modelo artístico que jamais poderá ser ultrapassado, ­impondo-se como norma aos discursos posteriores (é ele que ­Averróis utiliza como termo de comparação no seu comentário à Poética de Aristóteles, sobrepondo-o a toda a poesia até ­ao seu tempo); por sua vez, Maomé é O Autor por excelência que não apenas registou as regras a serem seguidas pelas ­obras de arte, como as pôs em prática de um modo único. ­Entre aquelas regras encontra-se a (nem sempre respeitada)­ proibição de representar seres animados que, é já um lugar ­comum, estará na base do desenvolvimento da arquitectura ­como principal forma artística, e fundamenta o recurso a ­elementos abstractos e florais para exprimir o espiritual. ­Tem, como exemplo mais próximo, os azulejos decorativos: a­ repetição até ao infinito de um mesmo padrão que aspira a ­transmitir o belo e o divino – o indizível.

Em Os Versículos Satânicos, Rushdie, o apóstata, transgride ­o «hodud»: representa deus como um velho doente, com caspa e­ óculos (p.295). Utiliza como personagens principais, não ­apenas uma caricatura do anjo Gabriel, como também do­ próprio Maomé (e de Khomeini). Brinca com a (má) escrita do ­texto sagrado, desmistificando a palavra divina e o milagre­ que preside à sua qualidade literária. Ainda, refere a­ tentação de idolatria e politeísmo que acometeu o profeta – ­o pecado de «shirk» -, tanto mais grave quanto as divindades­ propostas como concorrentes de Alá são femininas (p. 142).­

Todas estas blasfémias (ou erros artísticos), ­individualmente puníveis com a morte, desencadeiam a ira e a­ «fatwa» de Khomeini, que não é apenas um pretexto político. Na sua qualidade de Imã, aquele foi duplamente ofendido: o ­Imã (desaparecido no ano de 878) é o salvador do mundo que se ­espera reapareça no final dos tempos (tal como o Messias­ judaico), é uma reencarnação do profeta.

A violência fanática dos adeptos de Khomeini não pode ser ­comparada – como o tem sido – com a agressividade­ desencadeada pelo filme de Scorcese (A Última Tentação de ­Cristo), nem tão pouco com as sensibilidades do Kremlin às revelações sobre a vida privada dos seus pares, porque o ­ocidente está «des-sacralizado».

Para os xiitas, a essência ­do seu mundo, onde política, arte e religião são ­indissociáveis, foi ameaçada. E, nestas circunstâncias, a «inocência» de Rushdie deixa muitas dúvidas: «O rapaz ­encolhe os ombros. “Trabalho de poeta”, responde. “Nomear o ­inominável, apontar a dedo as imposturas, tomar partido, ­inaugurar disputas, moldar o mundo e impedi-lo de adormecer.” E se rios de sangue jorrarem dos golpes que os ­seus versos infligem, então esse sangue alimentá-lo-á. É o ­poeta satírico, Baal.» (p.99).

Ironicamente, embora alguns ­romancistas tenham sido perseguidos – e muitos morrido -­ porque o conteúdo das suas obras ofende o poder, nenhum o­ foi ainda por não cumprir com as regras básicas de uma ­poética.

Olhando para Os Versículos de uma perspectiva «ocidental», ­toda a problemática islâmica se apresenta como obsoleta e­ sem sentido. A ideia de modelo, a exigência de uma poética, ­de uma norma-padrão para o fabrico de uma obra de arte,­ foram-se perdendo desde o Renascimento.

O direito a «falar,­ escrever, imprimir livremente» foi registado em 1789, e ­estamos já habituados à autonomia artística decretada por­ Kant, aos conceitos de criatividade e originalidade valorizados pelo individualismo romântico. Uma obra mede-se ­face a outras, pelas suas qualidades estéticas, e não pelos ­conceitos políticos, filosóficos, ou éticos que nela se ­possam encontrar. A escrita não é sagrada, os próprios ­textos religiosos podem ser apelidados de ficção, e a dúvida ­científica tem levado a leituras alegóricas dos ilogismos da ­fé.

O último romance de Rushdie terá, então, de ser avaliado ­face aos anteriores, e o saldo revela-se como não positivo.

Os Versículos representa um exacerbar, nem sempre bem­ conseguido, das estratégias narrativas já utilizadas – ­histórias de encaixe, «mise-en-abyme», o recurso ao ­fantástico, ao sonho, à citação, os jogos de palavras, o uso ­de «crioulos» (indiano/inglês). Os heróis, anjo e demónio, são apresentados como duplos gemelares – duas facetas de uma­ mesma personalidade: Gibreelsaladin Farishtachamcha – que­ «reencarnam» separadamente após uma queda do Céu, numa ­inversão do processo criador. Desdobram-se em personagens­ fracamente caracterizadas o que, a par da multiplicação de narradores e pontos de vista, leva a perder os fios da(s)­intriga(s).

No entanto, este é um daqueles casos curiosos em­ que o original sai claramente beneficiado pela tradução: ­estão de parabéns os tradutores, pois a versão portuguesa­ atenua a inferior qualidade literária que, frente aos seus ­antecessores, se exibe em Os Versículos Satânicos. E nem o ­auto-de-fé a que o romance foi sujeito, nem as mortes que ­provocou, podem alterar esse facto.

Impõe-se, no entanto, a­ defesa do autor, como diz Christopher Hitchens: «Temos de­ estar do lado de Salman Rushdie, não porque ele seja um ­cão-batido, mas porque não há mais nenhum lado para estar.»­ (London Review of Books, vol. II, nº. 20, 26.10.89).

Helena Barbas [O Independente, 1989 – Os Versículos Satânicos – Salman Rushdie – Trad. Ana Luisa­ Faria e de Miguel Serras Pereira – Dom ­Quixote/Circulo de Leitores, 1989]

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