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Hanan Ashrawi

Hanan Ashrawi regressou às televisões, Aljazeera – ou aqui na CNN – em protesto contra a declaração americana sobre Jerusalém. Em 1995 tive oportunidade de a entrevistar em Ramallah para o Expresso. Na ocasião de um livro – This Side of Peace – A Personal Account, cada vez mais profético. Passaram-se 22 anos pautados por empates e desentendimentos. Deixo aqui os dois textos, em ordem inversa para melhor enquadramento.

«Prisioneira da Palavra

Há já algum tempo que Hanan Mikhail-Ashrawi não aparece nas televisões. Mas é difícil esquecer esta mulher que, de repente, nos entrou casa adentro articulando, num inglês impecável, a defesa do povo palestiniano nos territórios ocupados. Sem véus, de saia e casaco, cabelo curto e cara franca, vinha-nos falar de «terroristas» numa linguagem compreensível, civilizada. Enfrentando as câmaras sem pestanejar, inspirava confiança e simpatia. As ideias feitas vacilaram diante desta presença.

Hanan desapareceu do circuito mediático depois de Arafat ter apertado a mão a Rabin na Casa Branca, mas não abandonou a luta. Continua o seu trabalho como presidente da Comissão Independente para os Direitos dos Cidadãos Palestinianos, em Jerusalém, e acabou de lançar um livro – Este Lado da Paz – Um Relato Pessoal – onde narra as aventuras políticas e diplomáticas em que participou, bem como todos os trâmites das negociações que permitiram chegar ao reconhecimento internacional da O.L.P.

Mulher, cristã, árabe, casada e mãe de filhas, vivendo num mundo em que a dominação masculina é ainda mais feroz, tomou-se, aos 49 anos, um modelo a seguir, uma moderna «legenda» feminina. Tanto mais quanto pertence à elite intelectual – doutorada em Literatura Medieval Inglesa, foi a primeira catedrática da Universidade de Birzeit. É com uma lúcida consciência destes factos, tentando explorá-los e retirar deles todo o proveito possível, que nos oferece o seu livro.

Será por este motivo que primeiro se justifica a forte componente biográfica, que combina com os factos históricos que ajudou a fabricar. O uso do pronome pessoal, um «eu» que é narrador e personagem, além de se assumir descaradamente como autor, impõe-se do princípio ao fim, num texto que se afirma como histórico e político. Porque, de facto, o tema principal são os acontecimentos ocorridos desde Junho de 1967 – a Guerra dos Seis Dias, em que os israelitas chegam ao canal de Suez – até Outubro de 1994, data em que Yasser Arafat, Shimon Peres e Yitzhak Rabin são nomeados para receber o Prémio Nobel da Paz.

OSLO, NORWAY: (l-r) Yasser Arafat, chairman of Palestine Liberation Organisation (PLO) shown in a picture dated 10 December 1994 in Oslo, with Israeli Foreign Minister Shimon Peres and Israeli Premier Yitzhak Rabin as they pose with their Nobel Peace prize, which they were awarded in the Oslo City Hall. (Photo credit should read MENAHEM KAHANA/AFP/Getty Images)

Diz-nos Ashrawi que o seu objectivo é «narrar este lado da paz que os livros padrão das ciências históricas e políticas têm tendência a ignorar – o relato pessoal de um actor e a dimensão humana de um processo impessoal» (p. 15). O seu lado da paz corresponde, assim, à versão palestiniana do sofrimento provocado pelas guerras israelo-árabes, mas também das dores causadas pelas dissensões internas entre os próprios palestinianos, das divergências entre os exilados e os que ficaram, da amargura dos que começaram com «uma visão de paz e um sonho de liberdade e correram riscos para os alcançar» e descobrem que «o processo em cujo lançamento tínhamos participado tinha mudado o seu caminho e, com toda a probabilidade, iria fazer de nós as suas primeiras vitimas. De onde estávamos, deste lado da paz, o futuro parecia ominoso, doloroso, e longe de ser pacifico» (p. 288).

É esta dimensão humana, uma segunda justificação do biográfico, que Ashrawi usou para transformar o discurso político tradicional, para conquistar os «media», para tentar criar uma nova voz para um povo silenciado: «Eu era uma porta-voz, e fiz o voto de falar com a voz do meu povo, usar o manto da sua visibilidade e desfraldar, perante os olhos do mundo, as imagens da sua melancolia e da sua alegria. Capturar o seu espirito em linguagem e libertá-lo diante de testemunhas. Seria a que porta a voz da nossa realidade humana, para desaferrolhar do peito as nossas palavras silenciosas e com elas abrir os corações e as mentes dos homens e das mulheres. E iria fazê-lo com amanah. Estávamos a caminho, prontos a atravessar o rio Jordão, já purificados e procurando uma passagem segura» (p. 135). Com a «amanah», uma espécie de honra árabe, a responsabilidade de alguém a quem foi confiado algo de muito valioso, que exige integridade, honestidade e lealdade.

Como árabe-cristã, Hanan tem uma vantagem enorme em relação a todos os participantes nas negociações de paz, porque conhece as suas várias linguagens. Leu os livros sagrados – Alcorão e Bíblia -, e a ambos vai buscar as metáforas adequadas para enriquecer os seus discursos. Tem no seu passado religioso a Tora israelita – o Pentateuco -, o que lhe permite lidar à vontade no mesmo terreno, virar contra os «ocupantes» os seus próprios argumentos. E o Novo Testamento deixa-a por dentro da mentalidade dos mediadores. A todas estas marcas, presentes no livro, associam-se as da professora de Literatura. Hanna não se coíbe de recorrer aos referentes literários da cultura ocidental, de citar autores universais, de deixar pistas e piscadelas de olho ao hipotético leitor, num esforço para dar a dimensão trágica dos dramas individuais de um quotidiano de guerra: «Tínhamos santificado o roubo dos cadáveres como parte do ritual da última passagem, porque o impedimento da lamentação pública e do enterro santificado era mais cruel e moralmente repugnante do que este roubo sinistro. Antígona teria aprovado.» (p. 214).

Exímia conhecedora da retórica clássica, não lhe é difícil adaptar-se às suas novas formas e fórmulas, tal qual são impostas aos políticos pelos Meios de Comunicação – e usa-as como uma arma eficaz, jogando com a informação para antecipar e comprometer os «inimigos», sabendo sempre que os «media» podem ser «um pau de dois bicos»: «Subitamente, senti-me prisioneira da Palavra que tinha saboreado e reverenciado por tanto tempo. O logos, formidável como inimigo e avassalador como amigo, tinha-se tornado senhor e escravo. […] quantos espectadores tinha em mente, quais tinham aberto esta caixa de Pandora de autoconsciência linguística e existencial? Depois recordei-me da amanah […] Demasiadas vezes descrito como um povo dado à paixão e à hipérbole, como um povo de tragédia extravagante, este era o momento de deixar o povo palestiniano transmitir a sua verdade simples. Então tomei consciência de que o importante não era tanto o pluralismo e a diversidade do público, mas a unidade e a integridade da mensagem. Neste drama, o tempo e o lugar eram meros aspectos técnicos» (p. 155).

É a consciência da linguagem e das suas «nuances», das retóricas possíveis e mais eficazes em termos públicos e políticos que fundamentam o seu sucesso. Mas é também esta consciência que transforma as cenas biográficas narradas em topos retóricos, demasiado belos para serem verdadeiros (a compreensão das filhas pelas ausências, um marido que lhe faz as malas para a viagem). É ainda esta consciência do poder da palavra que a leva a distanciar-se de Arafat: «O discurso do presidente durante a assinatura enviou um triste sinal aos palestinianos de todo o mundo. […] Em Madrid tínhamos tentado estabelecer a nossa singularidade e a nossa união com toda a grande órbita das nações e da história; em Washington, Abu Ammar usou a linguagem da exclusão para nos evidenciar.» E alguém lhe diz: «A mensagem implícita neste discurso é que a tua linguagem está acabada. A próxima fase não é para os poetas e intelectuais. É a era dos políticos duros, em que os slogans são armas de uma luta pelo poder. Os interesses pessoais produzem clichés, e não visões humanistas» (p. 272).

O irónico é que foram os intelectuais que abriram o caminho aos políticos duros, que se demitem em protesto contra os termos em que o acordo estava a ser assinado, e quem previne dos perigos em que a mudança de discurso aparece como mero sintoma: «Avisei contra a fragmentação da terra e da autoridade, contra o possível sistema de apartheid que daí emergiria, contra a divisão da fase transicional em subfases, e contra o permitir que Israel se livrasse das áreas mais difíceis de controlar enquanto mantinha o seu poder sobre as áreas que tinham uma forte presença de «settlers» e um forte preconceito ideológico» (p.253).

Prisioneira ainda da Palavra, Hanan Ashrawi retira-se para os gabinetes, a criar leis e a estabelecer as regras sobre as quais se fundam as instituições. Mas o seu livro deixa a suspeita que não será fácil silenciá-la.

(Hanan Ashrawi, This side of peace –A Personal Account, Simon and Shudter, Nova Iorque 1995, 318 págs.; 110 NIS).»

Helena Barbas, Expresso 5 de Agosto de 1995, pp. 55-56

 

«Quero Criar uma voz nova

Entrevista de Helena Barbas

Terá sido o destino quem empurrou Hanan Ashrawi até à política. Ou o seu nome, a Terna Guerreira. Ex-porta-voz do povo palestiniano, amiga e conselheira de Yasser Arafat, retirou-se da cena pública, mas continua a lutar nos bastidores pelos direitos legais do seu povo. E fala-nos agora sobre o livro que acabou de lançar: Este Lado da Paz – Um Relato Pessoal. Com ironia e apreensão quanto aos componentes humanos da tão frágil demanda da paz.

EXPRESSO – O que mais impressiona seu livro são as estratégias literárias escolhidas: uma mulher a usar o «eu» para narrar acontecimentos políticos que estão a fazer história e apresentá-los em tom de romance. Pretendeu fazer uma abordagem «feminina» a um domínio maioritariamente masculino?

Hanan Ashrawi – Foi intencional. Definitivamente é uma aproximação feminina, ou antes uma abordagem humana. Escolhi o relato pessoal para narrar uma realidade colectiva. O «eu» e as pequenas narrativas particulares sobre o papel que desempenhei, são apenas um pretexto para transmitir uma realidade mais vasta, dar uma pequena dimensão da verdade por detrás da totalidade dos acontecimentos.

EXP. – A intervenção da história pessoal não cortará, por vezes, a intenção política?

H.A. – Não, porque a política sem a substância humana toma-se uma coisa abstracta. Se perde de vista o seu lado humano, o conteúdo humano, deixa de ser política e toma-se num mero jogo. E estou muito empenhada em trazer de novo a componente humana para a política.

EXP. – Diz que pretende colmatar o que considera ser uma necessidade fundamental: criar uma História para a Palestina a partir do interior. Uma narrativa que tem por objectivo conseguir um reconhecimento político e uma identificação histórica para a nação. Estende esses mesmos objectivos a si própria?

H.A. – Absolutamente. Escrevi o meu livro como uma das coisas mais autênticas do real, mas para mostrar uma realidade maior do que eu própria, mostrar o que está por detrás dos fenómenos políticos e criar um referente.

EXP. – Para criar uma nova voz política?

H.A. – Queria criar um lugar, uma nova voz para o povo, para a tomada de consciência de um povo, com todas as suas fraquezas, as suas forças, a dor e a guerra, com a totalidade da nossa realidade, da nossa humanidade. Isto é apenas uma tentativa, não posso dizer que tenha tido êxito, mas não se podem discutir aspectos da ciência política apenas numa linguagem abstracta e esquecendo as pessoas.

EXP. – Isso quer dizer que, quando refere uma mudança na linguagem das negociações de paz – após os acordos de Camp David, o aperto de mão entre Arafat e Rabin – está a fazer uma crítica à recuperação do discurso político «masculino»?

H.A. – Não se trata apenas de criticar o uso do discurso masculino na política. Mas de alguma maneira houve um retrocesso, o recuperar de uma linguagem em que predominam os slogans e a retórica do discurso político tradicional, é o discurso da exclusão, mais distanciado da realidade humana. Acabamos por não nos reconhecer nesse discurso, e o mundo não nos pode conhecer através dele.

EXP. – O facto de lançar o livro num momento crítico dessas conversações de paz significa que teve a intenção de lhes recordar a sua linguagem?

H.A. – Não necessariamente recordá-los da minha linguagem, mas da dor e do sofrimento humanos, do facto de que não estamos na política apenas por nós próprios ou para arranjar um lugar para nós próprios, mas para lutar pelo povo. Temos essa responsabilidade. Fiz alguma coisa de errado?

EXP. – Já recebeu algumas críticas?

H.A. – A maioria das pessoas diz-me que é um livro honesto, particularmente porque não é vingativo, e que apreciaram o lado pessoal da narrativa…

EXP. – Editá-lo agora, depois de ter recusado a ribalta da política, de ter declinado um cargo na PNA, significa que não desistiu completamente da sua carreira política?

H.A. – Eu nunca desisti das lutas nacionalistas, e tudo depende de como se define «carreira política». Recusei um cargo, mas considero-me uma parte muito importante do processo de reconstrução. Uma nação precisa das suas instituições, e é necessário criar estruturas. Precisa de um sistema legal, de um sistema judiciário. As estruturas políticas e de segurança são fundamentais para o crescimento e engrandecimento da sociedade civil.

EXP. – Em termos públicos, de imagem mediática, os palestinianos eram identificados com os terroristas, e de repente aparece uma mulher – mãe, professora, estudiosa – que inverte completamente essa ideia feita…

H.A. – Fico muito contente que isso tenha acontecido.

EXP. – Mesmo que não o queira, tornou-se uma personagem pública simpática. Não vai aproveitar os lucros políticos desse efeito mediático?

H.A. – O que quer que possamos usar de modo a tornar-se útil para apresentar uma imagem verdadeira do nosso povo, iremos usá-lo. Mas nunca perdendo de vista o objectivo colectivo, que é o mais importante.

EXP. – O seu caso é muito particular: uma mulher quando, no mundo árabe (e no resto do mundo, aliás), as mulheres ficam sempre em segundo lugar…

H.A. – Isso é connosco: temos apenas que lutar para não aceitar esse segundo lugar.

EXP. – Isso significa que tenciona voltar à ribalta se necessário?

H.A. – Bom, depende. Tudo tem o seu tempo e o seu lugar. Terei que pensar nas circunstâncias e depois tomarei uma decisão.

EXP. – Quer dizer que não tem participado nas actuais negociações?

H.A. – Estou a par, mas não tenho participado.

EXP. – As resoluções foram adiadas para o fim de Julho, depois para Agosto, pensa que desta vez haverá resultados concretos?

H.A. – Uma coisa sei ao certo sobre todas as datas e os prazos limite é que foram sempre adiados. Não temos que nos concentrar numa data, ou no fim das conversações, mas na sua substância.

EXP. – E tem algumas esperanças quanto a esta nova data?

H.A. – As coisas estão a ficar cada vez mais difíceis, e estamos a atravessar um momento muito complicado. São enormes os riscos de fragmentação entre as pessoas, relativamente à sua situação nas terras, os problemas estão longe de estar resolvidos.

EXP. – Considerando as previsões que faz no seu livro, não se sente uma espécie de Cassandra?

H.A. – Sei que é uma tentação humana, mas não. É sempre muito mais fácil ver as coisas de fora. Limitei-me a apresentar as nossas ideias e o muito que trabalhámos. Era preciso descrever o modo como funcionámos e participámos no processo.

EXP. – No que respeita às questões mais recentes, continua a lidar com os problemas dos prisioneiros palestinianos?

H.A. – Sim. A maioria dos prisioneiros suspendeu a greve da fome. Para mim não se trata de um problema político, mas humano. Estive com eles porque têm um direito civil, um direito humanitário, e tem que haver uma libertação dos prisioneiros.

EXP. – Também considera os problemas com os «settlers» uma questão humanitária?

H.A. – Eles são israelitas.

EXP. – Portanto não lhe dizem respeito?

H.A. – Têm as suas organizações para os proteger, não cabem na minha jurisdição. A nossa organização não se pode preocupar com os «settlers», além do mais estão a ocupar as nossas terras ilegalmente.

EXP. – E quanto aos palestinianos colaboracionistas, que agora se descobriram, vêm ter consigo a pedir protecção?

H.A. – Claro que estamos a tratar desse problema. Neste momento isso pode ser considerado como traição, podem ser acusados de ter estado a trabalhar como agentes do inimigo. É uma questão legal muito complicada, e estamos a tratar dela. Queremos ter a certeza de que os direitos humanos não são violados, seja particular seja psicologicamente, e que eles tenham direitos legais como toda a gente, independentemente do que tenham feito.

EXP. – Regressando ao seu livro, por duas vezes inverte uma citação de T. S. Eliot – «not with a whimper, but with a bang»/«não com uma lamúria, mas com um estrondo» – quando se refere ao fim das negociações. Pretende regressar com um «bang»?

H.A. – Não era uma afirmação pessoal, era relativamente aos palestinianos. Deveríamos ser capazes de chegar ao fim com um «bang». Mas infelizmente sinto que teremos que nos mover com muito cuidado. Já conquistámos muita coisa, mas há ainda muitos perigos e muito trabalho.

EXP. – Está a preparar mais algum livro?

H.A. – Estou a escrever um romance. Tem por título «Uma Mulher que não Sonha».

EXP. – Trata-se de uma mulher palestiniana?

H.A. – Sim, mas penso que venha a ter uma dimensão mais universal.

EXP. – É político?

H.A: – Tudo é político.»

Expresso 5 de Agosto de 1995, pp. 54-55

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