Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

[IV – A Relação Poesia-História]

 

3. Laura e o Mito Imperial

  3.1  A construção da figura de Laura

  3.2  A Laura de Tagarro

iv - Conclusões prévias

 


]  3.1 A construção da figura de Laura [ 

 

A tornada desta "canso" («En cest sonet coind'e leri» [1]) traz a assinatura  de Arnaut (Daniel) em três versos magníficos, muitas vezes citados, e duas vezes por ele próprio noutras canções:

«Eu sou Arnaut que que apanho o vento...»

«...qu'amas laura» pode ser interpretado, por vizinhança sonora, «que ama Laura» e poderia ter sido esta proximidade de sons que deu nascimento, pelo jogo da imaginação poética, à Dama de Petrarca; porque Petarca, que pede de empréstimo a Daniel a forma da sextina, que a criou como forma poética autónoma, dando-lhe um lugar importante no seu «Canzoniere», faz uma alusão clara a esta "canso" na sextina «là ver l'aurora che si dolce l'aura», onde se dedica a esta identificação entre palavras-sons.[2]

      O encontro de Petrarca com Laura na Igreja de Santa Clara é datado de 6 de Abril de 1327, ano em que alguns críticos fazem nascer o humanismo. Exactamente 21 anos depois, no mesmo dia, morria a musa, dando origem à segunda parte da obra do autor, intitulada "In morte de madonna Laura" pelo seu biógrafo Vellutello. É este quem fixa o texto poético de Petrarca e o associa a um percurso amoroso à revelia da ordem estabelecida pelo poeta toscano. A lenda é imposta à obra, e Laura torna-se uma entidade de "carne e osso":

Com a eleição de Laura como "dona" poética a quem Petrarca se entrega, o poeta vai renovar requintadamente o velho conceptualismo da poesia provençal, afiliando-se transitoriamente numa retórica subtil em que o nome de Laura equivale a Aurora, Louro, Laurea, ou bem num artifício que já havia agradado a Arnaud Daniel, um nome oculto em Aura. O soneto "L'aure che 'l verde lauro e l'aureo crine" é uma complacência fónica com o nome da sua "dona", e um outro soneto, "L'aurea mia sacra al mio stanco riposo" joga conjuntamente com o sentido próprio de aura e com o do nome amado. [3]

      Petrarca associa-se, então, à poesia lírica provençal, ao hermetismo do "trobar clus", podendo o nome de Laura funcionar como "senhal" à semelhança de "Prima verrá", a Primavera/Giovanna de Cavalcanti. A mulher no "petrarquismo" torna-se, então, uma: «potência poética da qual o poeta extrai a ideia de beleza, o que explica que Ficino lhe tenha assignado o elemento platónico do amor-contemplação..[4]. Esta imagem feminina ideal – que é uma máscara das concepções filosóficas do poeta – exige, no entanto, algum "lastro" concreto e material:

Porque Laura, para além da sua existência real, é uma vigorosa necessidade criacional do homem Petrarca, um elevado motivo poético ao qual o poeta concede uma ténue ligação terrestre através de notas realistas que o apoiem na ideação dela, como o soneto sobre o seu primeiro encontro «Era il giorno ch'al sol si scolotato", ou em dar-lhe o autêntico nome de Laureta, ou ao relacioná-la com um retrato pintado por Simone Martini no soneto "Per mirar Policleto a prova fiso. [5]

Tendo em conta que a "Prima Verrá" de Cavalcanti está directamente relacionada com a figura da "Primavera" de Boticcelli, torna-se certamente interessante esta afirmação sobre Laura, que reitera a ligação entre poesia e pintura, especialmente se se tiver em conta a tradição emblemática. Relativamente a este aspecto, o retrato, por si só, não prova a existência efectiva de Laura, mas pode atestar que esta não é apenas um ideal amoroso.

      Quando elabora o plano final de organização da sua obra, Petrarca recolhe as suas cartas em prosa e em verso, e divide o cancioneiro em duas partes: «na primeira, segundo o tema da écloga terceira do Bucolium carmen o amor por Laura corresponde ao amor da glória; na segunda (...) Laura torna-se a guia para o céu, que está longe de sentimentos vis.» [6], a "L'aura gentil" que se opõe à "L'aura popularis", ou a personificação da Verdade tal como aparece em "De Secreto Conflictu...":

... parecia-me ver ansioso e muito apresentar-se-me uma dona, de idade e esplendor excepcionais, e de uma beleza que os homens não compreendem suficientemente; nem eu sabia o que eu alcançava ver. Que era uma virgem mo revelavam todavia as suas vestes e o seu rosto. Espantei-me ainda com aquele aspecto insolitamente luminoso, e não ousava levantar os meus olhos para os raios que o sol dos olhos dela emitiam; e então falou-me assim: Não temas, não te perturbes com a minha beleza nova. Tive piedade das tuas dores, e desci de longe para te trazer uma ajuda a tempo. Já basta e já olhaste mais que baste, até agora a terra com olhos enevoados; e se a tal ponto olhaste essas belezas mortais em que eles se deleitam, que coisa não poderias esperar se os erguesses para as eternas?

Quando ouvi estas palavras, pois que ainda não me tinha recomposto do assombro, dei a resposta com a voz a tremer, pelo meio destes versos de Virgílio: «Que nome te poderei dar, ó virgem? Porque o teu rosto não é de pessoa mortal, nem a tua voz tem o som de uma voz humana». Eu sou eis a minha resposta aquela que tu na nossa Africa descreveste com amorosa elegância (...) Apenas acabara de concluir as suas palavras e, considerando todas as coisas, pensei que só a própria Verdade poderia ser aquela que me falava. [7]

      Nesta longa citação várias imagens se escondem por detrás da figura feminina. Em primeiro lugar, a sua caracterização como de extrema beleza, a par da referência à Verdade, exige que se faça a ligação com a sua terceira componente, a Justiça recorde-se que em Platão, Verdade, Beleza e Justiça são as três vertentes do Uno. Depois, ainda pelas suas particularidades, a figura associa-se à revelação da Ideia platónica, e logo, é sinónimo de conhecimento. Por sua vez, a citação de Virgílio [8] que sintetiza, numa mesma aparição, as deusas Vénus e Diana traz consigo as duas outras representações de Astreia. Tanto mais que esta Verdade de Petrarca conforme expresso é a mesma que a descrita na Africa, o que permite associar Laura ao  mito Imperial.

            Assim, parece possível afirmar que, sob a o nome de Laura, se personifica, igualmente, a figura de Astreia, com toda a carga simbólica – histórica, política e religiosa que consigo acarreta.

[] H.B.[]


[1] Arnaud Daniel: «En cest sonet coind'e leri»: «Sur cette mélodie précieuse et allègre. Je fabrique des mots je les rabote je les aplanis. ils seront vrais et certains. quand j'aurai passé la lime. puisque l'amour rapide polit et dore. mon chant qui d'elle vient. qui prix mantient et gouverne// Chaque jour je m'améliore je m'affine. la meilleure je sers et adore. du monde je vous le dis clairement. sien je suis des pieds à la cime. et que souffle le vent froid. l'amour qui au coeur me pleut. me tient chaud où est l'hiver// Mille messes j'entends et offre. je brule lumiàre de cire et d'huile. que Dieu m'en récompense. d'elle dont ne sauve nulle escrime. et je regarde ses cheveux blonds . son corps gai svelte et neuf. Je l'aime plus qu'avois Lucerne// Je l'aime de coeur je la recherche. de trop de désir je crois la perdre. si on peut perdre à aimer. son coeur vole au-dessus du mien. tout entier et sans essor. elle a si bien fait d'usure. qu'elle possède et l'ouvrier et la boutique// Je ne veux l'empire de Rome. ni qu'on me fasse le pape. si je ne peux retourner à celle. pour qui brule mon coeur et gerce. et si elle ne me guérit de ma douleur. d'un baiser avant l'an neuf. elle me tue et elle se damne// Pour le tourment que je souffre. de bien aimer je ne me détourne. même par la solitude. Puisque je fais mots en rime. je souffre plus aimant que celui qui laboure. et plus n'aima même d'un oeuf. celui de Moncli Audierne// Je suis Arnaut qui amasse le vent. chasse le lièvre avec le boeuf. et nage contre le courant.» citado por Jacques Roubaud, Les Troubadours (anthologie bilingue), Seghers, Paris, 1971, p.236.

[2] Jacques Roubaud: «La ”tornada” de cette canso ("En cest sonet coind'e leri" ) porte la signature d'Arnaut (Daniel) en trois vers magnifiques, souvent cités, et deux fois par lui-même en d'autres chansons: «Je suis Arnaut qui amasse le vent...»/ «qu'amas l'aura» peut-être interpreté, par voisinage sonore, «qui aime Laure» (Laura) et ce pourrait être cette proximité de sons qui a donné naissance par le jeu de l'imagination poétique, à la dame de Pétrarque; car Pétrarque, qui emprunte à Daniel la forme de la sextine, que la crée comme forme poétique autonome, lui donnant une place importante dans son "canzoniere" fait une allusion précise à cette canso dans sa sextine "là ver l'aurora che si dolce l'aura où il se livre à cette identification de mots-sons.», Ibid., p.236.

[3] Antonio Prieto: «Con la elección de Laura como ”donna” poética a la que Petrarca se entrega, el poeta va a renovar exquisitamente el viejo conceptualismo de la poezia provençal, afiliandose transitoriamente a una sutil retorica en la que el nombre de Laura equivale a Aurora, a Lauro, Laurea, o bien, en un artificio que habia placido ya a Arnaut Daniel, sera un nombre oculto en Aura. El soneto "L'aure che 'l verde lauro e l'aureo crine" es una complacencia fónica en el nombre de su "donna", y un otro soneto, "L'aurea mia sacra al mio stanco riposo", juega conjuntamente con el sentido próprio de aura y con el del nombre amado.» Op.Cit., p.xxvii.

[4] Antonio Prieto: «potencia poetica de la que el poeta extrae la idea de belleza, que explica que Ficino le asignara el elemento platónico de amor­contemplación...» Ibid., p. xxix.

[5] Antonio Prieto: «Porque Laura, mas allá de su andadura real, es una vigorosa necessidad creacional del hombre Petrarca, un elevado motivo poético al que el poeta presta un tenue afincamiento terrestre a través de notas realistas que la apoyen en su ideación, como el soneto de suprimer encuentro "Era il giorno ch'al sol si scoloraro", o el darle el autentico nombre de Laureta o el relacionarla con un retrato pintado por Simone Martini en el soneto "Per mirar Policleto a prova fiso".» Ibid., p. xxx

[6] Giovani Ponte: «nella prima, secondo il tema dell'ecloga terza del Bucolicum carmen l'amore per Laura corrisponde all'amore della gloria; nella seconda, ...Laura diviene la guida al cielo, che tiene lontano da sentimenti vili», Introd. a Opere de Francesco Petrarca, U. Mursia & C., Milano, 1968, p.xv.

[7] Francesco Petrarca: «...che mi sembrasse di vedere ansioso e ben desto presentarsi a me una donna, di età e splendore eccezionali, e d'una bellezza che gli uomini non comprendono abbastanza; né sapevo per quali vie giungeva. Che fosse una vergine mi rivelavano tuttavia le sue vesti e il suo volto. Stupivo dunque per quell'aspecto insolitamente luminoso, e non osavo levare il mio sguardo verso i raggi che il sole dei suoi occhi riversava; ed essa cosí mi parló: Non temere, non turbarti per la mia bellezza nuova. Ho avuto pietà dei tuoi dolori, e sono discesa di lontano a portarti un tempestivo aiuto. Abbastanza, e piú che abbastanza, hai finora guardato la terra con occhi annebbiati; e se a tal punto codeste bellezze mortali li dilettano, che cosa non puoi sperare, se li innalzerai alle eterne?// Quand'ebbi udite queste parole, poi ché non mi ero ripreso ancora dallo sgomento, a fatica le riposti con você tremante, per mezzo di quei versi di Vergilio: "Quale nome potrei darti, o vergine? Poi ché il tuo volto non è di persona mortale, né la tua voce ha suono como di voce humana." Io sono essa mi riposte colei che tu nella nostra Africa  hai descrito con amorosa eleganza (...) Appena aveva concluso le sue parole, e, considerata ogni cosa, pensavo che solo la Verità stessa fosse colei che mi parlava.» Ibid., p.433.

[8] Virgílio: «Ainsi parle Vénus, et le fils de Vénus lui répond: "Je n'ai ni entendu ni vu aucune de tes soeurs,” vierge que je ne sais de quel nom t'appeler, car tu n’as point l'air d'une mortelle, et ta voix n’a  pas le son humain. O déesse, oui, j’en suis sur, es-tu la soeur de Phébus (Diana), ou du sang des Nymphes?», Op. Cit., p.40.

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