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Casimiro de Brito – uma leitura

Casimiro de BritoNos oitenta anos do poeta Casimiro de Brito, recupero uma crítica antiga a um livro de 2000 – Na Via do Mestre – que já vai na sua terceira edição.

«Mutações das imagens

O NOVO e belíssimo livro de poemas de Casimiro de Brito inspira-se, confessadamente, numa obra-prima da literatura e filosofia chinesas: o Dao De Jing (dantes Tao Te King), de Lao Zi (dantes, Lao Tse, ou Lao Tzu para os ingleses). Os nomes do livro e do autor apareceram fundidos durante muito tempo. Sabe-se que o homem foi o primeiro grande historiador e curador dos arquivos imperiais chineses algures durante o século VI a.C. Ao livro, os estudiosos dataram-no como pertencendo aos séculos III e VIII d.C. Uma incongruência que não afecta a sua categoria de texto fundador da escola do Tao.
Também não perturba o poeta português, que lhes recupera a lenda à maneira de prefácio: «Havia que passar para o outro lado. Então Lao Zi pegou no seu poema e pagou, com ele, a sua portagem. E continuou a caminhar até desaparecer. (…) As minhas visitas ao Dao não acrescentam grande coisa. Mas precisava de pagar a minha portagem» (pág. 5).
À letra (melhor, ao ideograma) Tao/Dao têm dado o significado de caminho: o «caminho correcto» ou o «caminho dos céus» – transformando o conceito no princípio moral e político que vai ser seguido pelos confucionistas. Mas «O Tao que se procura alcançar não é o próprio Tao;/ O nome que se lhe quer dar não é o seu nome adequado» (como se diz na tradução de António Melo, Estampa, 1977), e desafia assim definições, tornando-se também no princípio místico inspirador de um taoísmo naturalista.
A esta contradição dos modos do caminho, estático e a ser seguido por um sujeito, acrescenta-se um terceiro sentido, o do «fluir» – que concentra em si as ideias de espaço e tempo, tornando o Tao independente do indivíduo, sendo antes o homem apanhado num processo que observa e não controla, apenas lhe sentindo as consequências. E será este o sentido que mais claramente decorre da ideia de «Via» que intitula os poemas agora publicados.
Ainda no prefácio, Casimiro de Brito explica a relação que estabeleceu com os textos do Mestre: «O meu poema nasceu da leitura continuada do Dao De Jing. Cada um dos seus fragmentos começou por ser uma gota de água bebida nesse rio, uma ideia, uma imagem, uma metáfora, ‘oferecidas’ pelo poema de Lao Zi. Dessas gotas quase nada subsiste, nada de letra, elas desenvolveram-se em poemas que depois foram sendo polidos (evaporados) até se tornarem noutra coisa, anos a fio de trocas, entre o pleno e o vazio, entre a casca e o conteúdo, entre o texto desejado e o texto possível – o doloroso prazer da escrita.».
Deste processo de destilação quase alquímica resultaram 81 poemas – tantos quantos os do Dao De Jing -, cujos versos ecoam os do Mestre, dialogam com ele, esclarecem ou desviam sentidos, particularizam situações ou tornam-nas ainda mais abstractas, numa citação contínua mais ou menos obscura: «Que nome darei a este caminho/ Se os pés que passaram, o peso do ar/ Já são asa ou barro e o caminho/ Desfeito já foi pela rosa doente/ Que nele repousa? Caminho não há/ Para sempre, sob o véu da casa – / Apenas o desejo perdura mas o desejo/ Não é mãe das coisas, seu sal cega-me/ E só a luz do não-desejo, o branco/ Mais vazio, anuncia o segredo a/ Flutuação dos corpos que não existem» (1, pág. 9).
Mutações de imagens num diálogo que se prolonga na conversa do poeta consigo próprio, quando oferece uma dupla leitura ao mesmo fragmento: «Não posso ver o rosto invisível/ Embora saiba que tem um nome inominado/ Não posso ouvir a palavra inaudível/ Embora saiba que silêncio não existe/ Não posso tocar no passageiro fugidio/ Embora recolha a sua luz obscura/ O nome o silêncio a luz que se aninha/ No vaso impessoal do meu corpo/ Que vai caminhando atrás da sua cal/ E regressa ao chão que nele flutua» (14); e mais adiante: «Os montes azuis não existem/ Se não posso trepar em silêncio/ A seus cumes dentro de mim» (14, «outra», pág. 22).
O mais curioso é a passagem da forma impessoal dos tratados ao uso do eu. Particulariza-se uma «via», um caminho e um fluir apenas dizíveis a partir do sujeito que os experimenta mas que só em função dos dizeres individuais se podem mudar em regra universal. Ainda de outro modo, estes versos cumprem com a ideia chinesa: o Tao absoluto é indizível (já se disse), mas a linguagem pode sugerir, fabricar imagens que conduzam a uma compreensão intuitiva, ou mística, dessa realidade fundamental.
Ao invocar o Mestre, ao falar dele, Casimiro de Brito obriga-nos a revisitar os textos de Lao Zi. Mas isso será apenas um prazer acrescentado, pois os seus versos, por si, são autónomos e vivem perfeitamente sozinhos.

Helena Barbas»

Expresso, Cartaz – ed. 1458, 7 de Outubro de 2000

NA VIA DO MESTRE
Casimiro de Brito
Pedra Formosa, 2000, 92 págs.

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